Acabei de ler um dos melhores livros possíveis, de um dos meus autores preferidos (o melhor escritor brasileiro) - Fausto Wolff.
O exemplar que eu tenho é da editora Leitura, de 1996, parece-me que outras editoras já editaram o livro. São 496 páginas de pura genialidade. Não se trata daquela genialidade às vezes chata, às vezes incompreensível - trata-se de genialidade com cultura, inteligência e muito senso de humor. É difícil falar de Fausto Wolff, pessoa e escritor muito original, falecido no Rio de Janeiro em 05/09/2008. Comunista humanista, sempre com textos de viés filosófico, seguia a linha de Brecht e Beckett, ou seja, daqueles pensadores preocupados com o descortinamento da realidade que se esconde por trás do fato comum. Gente que não é "mais do mesmo".
"À mão esquerda" é uma ficção com muita cultura inteligente, mesclada com autobiografia, filosofia, humor, surrealismo... ou seja, é difícil fazer uma resenha desse livro. Para se ter uma idéia esse autor despreza aquela palavra que não existe, é horrível, mas todo mundo usa de boca cheia: "vitrine". Prefere a que existe na língua portuguesa, a adotada pela norma culta: "vitrina" (pág. 197), contudo, não tem pudores de xingar a classe dominante brasileira com vários "filhos-da-puta". É Fausto Wolff. Também é Fausto Wolff ter desafiado a Rede Globo. Coisa para poucos.
Sem alguma cultura geral não se entende e não se gosta desse autor. Não é possível transitar entre Paulo Coelho e BBB e depois querer encarar um Fausto Wolff. Não dá certo. Não vai.
Outra característica: gostava de frases de efeito, à la Nelson Rodrigues: "Se você é inteligente, talentoso e original perca as esperanças de ser aceito", ou, "O homem é filho do medo, não é ele mesmo, ensinam-lhe a ter medo e ele aprende", ou, "A elite brasileira só não extermina os pobres definitivamente porque vai faltar empregadas domésticas" (por falar em empregada doméstica, um dia ainda faço um artigo sobre essa mentalidade coronelesca do séc. XIX - quando gostaríamos de ter sido colônia da França - refiro-me a essa nova imbecilidade brasileira: chamar emprega doméstica de "secretária". Pode explorar, pagar mal, desrespeitar, assediar moral e sexualmente, humilhar... pode fazer o escambau, mas tem que chamar de "secretária". Fica chique. Daqui a pouco essa sociedade volta para o séc. XVIII, se Deus quiser. Digo se Deus quiser, porque se continuar retroagindo no tempo, como está fazendo, um dia a sociedade brasileira chega na Renascença. Chamar de empregada doméstica e respeitar como ser humano, lembrando da dignidade da pessoa humana, é pedir demais para essa sociedade, não dá).
Vou transcrever duas opiniões constantes na contracapa do livro:
"Um romance denso, vigoroso, surpreendente. Concebido como uma polifonia, na qual diversas vozes se alternam em contraponto, exigiu do autor extraordinários recursos de maestria técnica. Seu leitmotiv é, obviamente, autobiográfico, mas extrapola esses limites. É uma composição que reúne o patético desvario de uma personalidade complexa a uma crítica social contundente de projeções mundiais. É regional e cosmopolita, contemporâneo e histórico. É Fausto e fausto. Traz em si uma tensão que pode ser chocante para almas delicadas, mas, de fato, como lamentou Mário de Andrade, de o movimento Modernista não haver conseguido, agarra a máscara do tempo e a esbofeteia" - Moacir Werneck de Castro.
"Fausto Wolff escreveu o livro mais importante de sua geração" - Carlos Heitor Cony.
Vale a pena transcrever, também, um pequeno trecho:
"Já naquela primeira viagem à Dinamarca Pérsio (ou seja, ele mesmo, Fausto Wolff) ficou impressionado com a intimidade do povo com a cultura. Até então, no Brasil, mesmo os intelectuais, quando falavam de arte, passavam a impressão de que eram apenas ilustrados, transmitiam ao interlocutor uma lição decorada e não estavam absolutamente interessados na resposta. A conversa era feita de citações, não vinha da alma, do sofrimento, da alegria, da experiência pessoal. Com exceção do futebol e da música popular, a cultura no Brasil não parecia fazer parte da estrutura do homem, não estava ligada a ele intrinsecamente; era apenas um ornamento a ser exibido eventualmente; algo para se aplaudir, mas que em verdade não fazia parte da vida. Com exceção dos idiotas congênitos, era difícil encontrar em Copenhague alguém que não discutisse filosofia, política internacional, costumes, com a mesma desenvoltura com que no Brasil se discutia um gol de Pelé." (pág. 253).
Como dizia Nelson Rodrigues: "os medíocres perderam a modéstia". Neste momento em que Paulo Coelho e José Sarney "acham" que são escritores, vamos lembrar que vale a pena para a alma conhecer Fausto Wolff e À mão esquerda.